INTRODUÇÃO
⌅Esse relato parte da experiência dos autores enquanto coordenadora e extensionistas no Projeto Qualidade de Vida para Todos (PQVT), tendo como foco a vivência com uma beneficiária diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Em abril de 2014, o projeto foi fundado e idealizado pela docente do curso de Educação Física, professora Dra. Cláudia Barsand de Leucas e financiado pela Pró Reitoria de Extensão da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Originalmente o projeto visa possibilitar que pessoas com deficiências, historicamente excluídas da sociedade, tenham acesso a atividades físicas no ambiente aquático promovendo uma melhora qualidade de vida e benefícios para a saúde.
O PQVT contribui para a formação e aprendizagem de profissionais para atuação em equipe multidisciplinar junto a pessoas com deficiência por meio de uma abordagem multidisciplinar, além de conscientizar a comunidade acadêmica sobre as potencialidades da pessoa com deficiência física, intelectual, auditiva, visual, múltiplas e com o Transtorno do Espectro Autista. Desde março de 2020, devido ao cancelamento das atividades presencias do PQVT impostas pela condição de pandemia da COVID-19, o projeto adaptou seus atendimentos para um formato remoto visando a continuidade das intervenções junto aos beneficiários, mesmo em um contexto de isolamento social.
Sendo o foco deste relato o atendimento à uma beneficiaria com TEA, será abordado abaixo um breve histórico sobre o transtorno. A primeira aparição da palavra “autismo” se deu em 1911, com o psiquiatra suíço Eugen Bleuler em estudos sobre esquizofrenia, classificado dentre os distúrbios das associações, afetividade e ambivalência (Barroso, 2020Barroso, S. F. (2020). O Autismo Para a Psicanálise: Da Concepção Clássica À Contemporânea. Psicologia Em Revista, 25(3), 1231-1247. https://doi.org/10.5752/p.1678-9563.2019v25n3p1231-1247 ). Em 1944, o psiquiatra austríaco Leo Kanner, cunhou o termo “Autismo Infantil Precoce”, para caracterizar um grupo de crianças que apresentavam um padrão em seus comportamentos. Desde então, vários estudos sobre o autismo tem sido realizados mundialmente, a fim de conhecer mais sobre a deficiência (Goulart & Assis, 1969Goulart, P., & Assis, G. J. A. de. (1969). Estudos sobre autismo em análise do comportamento: aspectos metodológicos. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 4(2). https://doi.org/10.31505/rbtcc.v4i2.113 ). De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), estima-se que em todo o mundo uma em cada cento e sessenta crianças tenha TEA.
A classificação do autismo tem mudado com o passar do tempo. Atualmente, é declarado no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais V, que teve sua primeira edição lançada em 2013, que o autismo é um conjunto de transtornos agrupados, dessa forma, o nome passou a abranger todo o conjunto, sendo ele, Transtornos do Espectro Autista (Barroso, 2020Barroso, S. F. (2020). O Autismo Para a Psicanálise: Da Concepção Clássica À Contemporânea. Psicologia Em Revista, 25(3), 1231-1247. https://doi.org/10.5752/p.1678-9563.2019v25n3p1231-1247 ).
O TEA é caracterizado por alterações qualitativas nas habilidades de interação social, dificuldades de comunicação e no engajamento em comportamentos repetitivos e estereotipados (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2000). As alterações de linguagem no TEA são caracterizadas por atrasos significativos no desenvolvimento das habilidades linguísticas ou até mesmo a completa ausência dessas habilidades. No nível pragmático, são encontradas alterações, que são perceptíveis nos primeiros anos de vida, através da ausência ou padrões anormais no contato ocular, nas respostas aos sons, no balbucio, nos padrões vocais e gestuais (Gonçalves et al., 2017Gonçalves, A. P., Da Silva, B., Menezes, M., & Tonial, L. (2017). Transtornos do espectro do autismo e psicanálise: Revisitando a literatura. Tempo Psicanalitico, 49(2), 152-181.). E essas podem ser evidenciadas em outras fases da vida pela dificuldade no uso da linguagem, do entendimento de metáforas e ironias e do reconhecimento de pensamentos e sentimentos de si e do outro.
De acordo com a percepção da equipe, durante os nossos atendimentos identificamos que indivíduos com TEA podem estar em maior risco de experimentar dificuldades para lidar com o impacto da COVID-19. No estudo realizado por Spain, et al. (2021)Spain, D., Mason, D., J Capp, S., Stoppelbein, L., W White, S., & Happé, F. (2021). “This may be a really good opportunity to make the world a more autism friendly place”: Professionals’ perspectives on the effects of COVID-19 on autistic individuals. Research in Autism Spectrum Disorders, 83(September 2020). https://doi.org/10.1016/j.rasd.2021.101747 discutiu-se os efeitos da pandemia em adultos autistas e não autistas. Ambos os grupos de participantes relataram ter experimentado estresse, ansiedade, preocupação e depressão como resultado da pandemia (Spain et al., 2021Spain, D., Mason, D., J Capp, S., Stoppelbein, L., W White, S., & Happé, F. (2021). “This may be a really good opportunity to make the world a more autism friendly place”: Professionals’ perspectives on the effects of COVID-19 on autistic individuals. Research in Autism Spectrum Disorders, 83(September 2020). https://doi.org/10.1016/j.rasd.2021.101747 ). No entanto, os adultos com TEA apresentaram taxas e níveis mais elevados desses sintomas. O fechamento de escolas, clínicas e programas comunitários colocaram as crianças e adolescentes com TEA em maior risco de resultados negativos devido a diminuição das intervenções comportamentais e suporte psicológico, que em alguns casos envolviam muitas horas de estímulo, por exemplo, 20-40 horas por semana (White et al., 2021White, L. C., Law, J. K., Daniels, A. M., Toroney, J., Vernoia, B., Xiao, S., Feliciano, P., Chung, W. K., Abbeduto, L., Aberbach, G., Aberle, S., Acampado, J., Ace, A., Ahlers, K., Albright, C., Alessandri, M., Alvarez, N., Amaral, D., Amatya, A., Zick, A. (2021). Brief Report: Impact of COVID-19 on Individuals with ASD and Their Caregivers: A Perspective from the SPARK Cohort. Journal of Autism and Developmental Disorders, 51(10), 3766-3773. https://doi.org/10.1007/s10803-020-04816-6 ).
Os beneficiários do PQVT, que antes eram submetidos à grande quantidade de estímulos, com a pandemia tiveram que se adaptar a uma rotina com redução das atividades e em formato remoto. Com o intuito de desenvolver estratégias adequadas para o atendimento dos beneficiários nesse novo formato, este estudo teve como objetivo propor um roteiro de atendimento para ser aplicado durante o regime remoto, junto a uma beneficiária com TEA, idade de 13 anos participante do projeto desde abril de 2017. Nosso plano de ação foi estruturado em formato de roteiro, de maneira que possa ser referência para atendimento de outros alunos com dificuldades e realidades similares.
MATERIAIS E MÉTODOS
⌅O presente artigo trata-se de um relato de experiência, com exposição das atividades aplicadas nesse período e as respectivas discussões acerca do caso. A base da pesquisa realizada pela equipe se deu por meio do banco de dados referente ao projeto que possui anotações específicas da beneficiária, o qual auxiliou nossa equipe a ter um ponto de partida. Na sequência, foram feitas pesquisas na literatura, utilizando a palavra-chave “Transtorno do Espectro Autista” ou “Spectrum Autism Disorder”, aplicado as áreas de Educação Física, Fisioterapia, Fonoaudiologia e Psicologia, nas bases de dados Scielo, PubMed e portal de periódicos CAPES.
Uma vez que o PQVT adotou as restrições e isolamento social devido a pandemia do COVID-19, os atendimentos remotos com esta beneficiária em específico ocorreram às sextas-feiras, às 15:00 horas, com uma duração média de quarenta minutos por atendimento, totalizando quinze atendimentos/ semanas, ao longo do período de fevereiro a junho do ano de 2021.
A escolha da beneficiária para este estudo foi motivada pelos desafios encontrados em conduzir as atividades remotamente, pois além do baixo grau de instrução familiar sobre o TEA, a beneficiária não possuía acesso clínico e escolar devido a pandemia. Além disso, a equipe notou uma barreira para atingir resultados positivos da mesma forma que ocorria presencialmente, sendo que o principal desafio era lidar com uma beneficiária com TEA que não possui comunicação verbal.
A primeira etapa dos atendimentos teve como base a identificação das demandas e interesses a respeito da beneficiária, a partir do relato da família. Sendo assim, os extensionistas organizaram, dentro desse âmbito, atividades de maior relevância e eficiência, alinhadas a exercícios que fossem motivadores. A segunda etapa consistiu em definir o conjunto de atividades e técnicas com o objetivo de estabelecer uma rotina e promover a qualidade de vida por meios que visavam propiciar maior conforto e familiaridade da beneficiária com os integrantes do projeto. Na terceira etapa foram utilizados recursos encontrados em seu cotidiano. As atividades foram elaboradas utilizando as ferramentas que usuária mais interagia em casa, sendo essas as músicas infantis e brinquedos. Através destes, foram aplicadas estratégias de imitação, atenção, esquema corporal, toque e dança para promover movimentos corporais através da utilização de violão, músicas infantis, uso de brinquedos, ajustes no local, recursos audiovisuais que objetivaram um espaço de troca mais lúdico, favorecendo a interação. Essas estratégias foram aplicadas de forma sistemática e criteriosa através de objetivos que estabeleciam a proximidade e aquisição de novas habilidades por meio de metas que propiciavam melhores resultados a curto, médio e a longo prazo.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
⌅A adaptação para o ambiente virtual foi a maior dificuldade encontrada pela beneficiária desde o início das reuniões nesse formato. Tal dificuldade resultou no desafio encontrado pela equipe ao elaborar e propor atividades, criar um canal de comunicação e realizar os atendimentos. Através de relatos dos ex-extensionistas do PQVT que já estiveram em contato com a beneficiária no atendimento presencial, nos foi descrito que o principal canal de comunicação durante as atividades aquáticas era o afeto através do contato físico. De maneira inevitável, esse contato foi totalmente perdido devido a mudança súbita do ambiente de comunicação.
O primeiro desafio foi desenvolver estratégias para adquirir uma forma de comunicação com a beneficiária. As atividades propostas inicialmente não surtiam o efeito esperado pela equipe pois estava sendo proporcionado uma variedade de estímulos e os resultados sempre eram instáveis, sem constância ou sinal de evolução na interação. Esse cenário se repetiu diversas vezes até que as aulas passaram a surtir um efeito negativo observado por toda equipe onde a beneficiária demonstrava insatisfação, ansiedade, aumento de estereotipias sendo observado pela agitação e balbucio da acompanhada, trazendo desconforto durante as reuniões, sendo esse o sinal de que a abordagem das aulas deveria ser totalmente revista e alterada.
Após observar essa falta de proximidade entre a equipe e a beneficiária, foram realizadas discussões junto a coordenação do projeto e ex-extensionistas que já haviam tido contato com a beneficiária, onde desenvolvemos uma nova ideia de abordagem a ser aplicada durante as reuniões. Esta abordagem consiste em proporcionar mais espaço, conforto e tempo para a beneficiária se adaptar com o meio de comunicação atual.
No decorrer dos atendimentos, foi possível notar que a beneficiária apresentou uma melhora significativa em alguns aspectos. Apesar de não ter um modelo único e algumas abordagens divergirem no procedimento com o sujeito autista, Gonçalves et al.(2017)Gonçalves, A. P., Da Silva, B., Menezes, M., & Tonial, L. (2017). Transtornos do espectro do autismo e psicanálise: Revisitando a literatura. Tempo Psicanalitico, 49(2), 152-181. reiteram que há um consenso sobre algumas etapas, sendo encaixadas dentre as principais maneiras o manejo da transferência e o tratamento com ênfase no jogo simbólico. Nesse sentido, nossa proposta foi sendo aprimorada e adaptada, buscando abrir um canal de comunicação com a interlocutora e reuniões que seguissem uma rotina para evitar acontecimentos imprevistos. Posteriormente, tendo obtido sucesso na comunicação inicial, a equipe visou atingir a esfera simbólica através de atividades lúdicas que se estenderam pelo semestre.
Todas as reuniões aconteciam na plataforma Google Meet®, era disponibilizado um link de acesso enviado para o celular da mãe da beneficiária que acompanhava as reuniões pelo aparelho. A primeira mudança na rotina foi no momento da abordagem, onde o celular da mãe da beneficiária passou a ficar posicionado em um local que permitia uma boa visualização, mas distante da beneficiária. Dentro da plataforma, todos os integrantes do projeto iniciavam a reunião com as câmeras desligadas, exceto o extensionista que conduzia a reunião e tinha a função de guiar as atividades. Evitou-se, no decorrer das atividades, solicitar ou cobrar uma resposta verbal da beneficiária de maneira frequente. Essas pequenas mudanças na abordagem proporcionaram um ambiente confortável e menos invasivo, resultando em uma mudança visível no comportamento da beneficiária no momento dos atendimentos.
As mudanças seguintes foram feitas no planejamento das atividades propriamente ditas. A nova metodologia consistiu em elaborar aulas com uma atividade base, presente em todos os atendimentos, e dentro dessa atividade base buscar evoluir e propor pequenas variações nos atendimentos subsequentes. Essa nova proposta permitiu que a beneficiária assimilasse as pequenas tarefas, como por exemplo, ficar de pé em momentos específicos. Sendo que, essas pequenas tarefas foram direcionadas a mãe que pedia para a beneficiária executar.
Com essas alterações, os componentes da equipe, juntamente com todo o suporte da coordenação, estruturaram a nova metodologia de atendimento, a qual podemos observar no quadro abaixo.
De maneira simultânea, foi desenvolvido um grupo apenas para os responsáveis pelos beneficiários, onde a Psicologia desenvolveu uma prática psicoeducativa que visa a reflexão, o fortalecimento de laços sociais em meio a pandemia, autoconhecimento, além da interação. Em estudo, Bosa (2006)Bosa, C. A. (2006). Autismo: Intervenções psicoeducacionais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(SUPPL. 1), 47-53. https://doi.org/10.1590/S1516-44462006000500007 faz um levantamento sobre intervenção e abordagens múltiplas, incluindo o acompanhamento de famílias ao lidarem com o autismo dentre as bases que qualquer tratamento. A autora ainda aponta para a incidência significativa de isolamento, estresse e depressão parental nessas famílias (Bosa, 2006Bosa, C. A. (2006). Autismo: Intervenções psicoeducacionais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(SUPPL. 1), 47-53. https://doi.org/10.1590/S1516-44462006000500007 ). A participação da responsável pela beneficiária foi de grande valia, esta teve a oportunidade de compartilhar sua vivência com outras pessoas em situações semelhantes, trabalhar suas expectativas e frustrações. Como ela era nossa principal mediadora dos encontros remotos, foi importante ver a evolução que ela teve consigo e consequentemente no comportamento com o outro, sendo cada vez mais cautelosa e respeitando seus limites.
A participação de toda a equipe, de forma multidisciplinar, buscou e busca promover mudança nos hábitos de vida da beneficiária proporcionando alterações em seu meio com o objetivo de integrar seu desenvolvimento neuropsicomotor, sua integração social e acometimentos que se referem ao sistema musculoesquelético. Através de estímulos que auxilie a aproximação da beneficiária com a equipe e com o meio em que vive foi possível incrementar uma rotina a fim de promover em primeiro modo a percepção corporal, no qual as atividades propostas têm demonstrado resultados positivos por meio da aplicação de estímulos motores e sensoriais de forma lúdica e da utilização das ferramentas disponíveis. Com o intuito de favorecer o desenvolvimento neuropsicomotor, aquisição de novas habilidades, melhora na socialização, favorecer as relações interpessoais e consequentemente a inclusão, os recursos utilizados têm demonstrado sinais positivos na comunicação, percepção da beneficiária no meio em que vive, reconhecimento de comandos verbais e mudanças posturais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
⌅O PQVT é um projeto que visa promover a qualidade de vida de pessoas com deficiência e o presente relato tem como objetivo contribuir para os atendimentos de futuros extensionistas e estagiários na abordagem de beneficiários que apresentam características semelhantes à deste estudo. Por meio da vivência do regime remoto de pessoas com TEA, o atendimento se tornou desafiador no período da pandemia, no entanto, fundamentado em revisões bibliográficas e com pequenas mudanças nas condutas foi possível alcançar bons resultados vislumbrando a inclusão de forma mais efetiva. Ao se tratar da equipe, o projeto fornece a oportunidade de desenvolver a prática extensionista e estagiária a fim de contribuir para a formação de profissionais cada vez mais qualificados, uma vez que estes enquanto equipe promovem mudanças significativas na vida de beneficiários pertencentes ao PQVT.
Nesse estudo foi possível apresentar a importância de os atendimentos serem realizados de forma individual, levando em consideração os critérios de satisfação, cuidado, e interação do beneficiário com a equipe de maneira afetiva e respeitosa. As ações desenvolvidas pela equipe promoveram mudanças no estilo de vida, na socialização e comportamentos da beneficiária diagnosticada com TEA. A equipe focou nos recursos disponíveis no momento dos atendimentos, visando superar as dificuldades decorridas do regime remoto, e preservando os interesses pessoais e utilizando desse meio para a aquisição de novas habilidades de pessoas com TEA e a participação da família como um meio crucial para tornar os atendimentos possíveis de serem realizados, considerando a disponibilidade, empenho e prazer de todos durante as aulas.
Dessa maneira, o estudo contribui para pensar na articulação multidisciplinar tendo visto que a integração de diversos campos do saber possibilitou atuar efetivamente sobre uma questão multifacetada. Além disso, permite auxiliar profissionais que se deparam com a mesma situação, bem como na formação inicial e continuada dos integrantes do PQVT e na contribuição para outros estudos que abordam conhecimentos pertinentes a essa área.