Nesse momento em que o mundo mudou, em função da pandemia provocada pelo Sars-Cov-2, a Covid 19, estamos sendo provocados, enquanto intelectuais, a pensar e propor alternativas para a vida. Estamos acompanhando as dores e sofrimentos provocados pelo vírus em todo o mundo com milhões de vidas perdidas e tantos outros problemas, de diferentes ordens, agravados.
No Brasil, temos escutado que a pandemia acentuou as desigualdades sociais e que estamos todos no mesmo barco, pois o vírus não escolhe cor, classe social, gênero, dentre outras. Penso que isso não é verdade, a desigualdade social só ficou mais visível e, no nosso caso, o vírus tem endereço. Morrem muito mais pobres e trabalhadores do que que pessoas de classes mais favorecidas. Estamos na mesma tempestade, mas não no mesmo barco. As vítimas são, em sua maioria, os trabalhadores que precisam enfrentar os ônibus e metrôs lotados, a falta de políticas públicas para que possam ficar em casa e se cuidar e tantos outros problemas. As principais vítimas, assim, são os pobres, que vivem em condições sanitárias mais precárias, e que são aqueles que estão mais sujeitos a situações que envolvem aglomeração.
Infelizmente estamos convivendo com um (des)governo genocida, corrupto, que governa para si mesmo e se mostra completamente descompromissado com o povo brasileiro. Existe um projeto necropolítico em curso que envolve a negação da Ciência em todos os setores, os quais sofrem os efeitos do corte de verbas que leva a falta de recursos, inclusive para o desenvolvimento e fabricação de vacinas contra a Covid-19. Além disso, assiste-se ao desmonte generalizado da educação e de órgãos a ela relacionados.
Diante desse cenário, mais de 600 mil vidas foram ceifadas e sabemos que milhares dessas mortes poderiam ter sido evitadas, se as vacinas tivessem sido adquiridas em tempo hábil e se políticas sanitárias em nível federal tivessem sido adotadas. Além da perda de vidas, há as perdas sociais econômicas: já são mais de 15 milhões de pessoas desempregadas, morando na rua, passando fome e frio. Todo esse contexto nos traz grandes desafios. Mas, tenho dito que precisamos aproveitar esse momento da pandemia para rever importantes aspectos de nossas vidas.
São vários os problemas mundiais e locais a serem enfrentados e superados. A pandemia, certamente, tem nos provocado a repensar como estamos vivendo a nossa humanidade; como tratamos a Mãe Terra, nossa Casa Comum, apenas explorando o que ela nos oferece, exercendo o consumo desenfreado e o individualismo, tão presentes nas sociedades capitalistas.
Há poucas dúvidas de que estamos vivendo a era das incertezas, das ambiguidades e da complexidade. Como nos diz Edgar Morin e Boaventura de Souza Santos, são tempos de passagens, e outros tempos se aproximam. Resta saber como cada um de nós e a coletividade responderemos aos novos desafios. É inegável que nesse contexto a educação precisa se debruçar no sentido de construir possibilidades outras para a formação dos sujeitos dessa temporalidade. Assim, vou me dedicar a pensar um pouco nas contribuições da Educação Física no contexto escolar em tempos de pandemia, destacando a corporeidade e tendo como aporte teórico o educador maior do Brasil, Paulo Freire.
Paulo Freire foi um dos principais educadores do Brasil, conhecido em todo mundo por suas ideias revolucionárias, pelas críticas ao sistema capitalista e por seu trabalho com a educação de jovens e adultos (dentre outros) que muito contribuiu para diminuir o analfabetismo em diferentes regiões do planeta, inclusive em Cuba. Ele foi professor, escritor de inúmeras obras, militante, comunista, e exilado no período ditatorial brasileiro (1964-1985). No retorno ao país, foi Secretário de Educação de nossa mais populosa cidade: São Paulo. É “Patrono da Educação” brasileira, amado por aqueles que defendem a educação como prática de liberdade e odiado pela ala retrógrada e conservadora que atualmente dirige nosso país. No ano de seu centenário, suas obras têm sido revisitadas e homenagens prestadas em todo o Brasil e no mundo. Seus conhecimentos nos ajudam a pensar o contexto pandêmico e os desafios para a educação, em especial a educação física e o seu trabalho com a corporeidade e o lazer.
Esse educador brasileiro foi um marxista convicto que, ao propor aos sujeitos da educação uma leitura ampliada da sua própria realidade, despertou a consciência critica, instigou a reflexão sobre o poder, a resistência, a ideia da educação como reprodutora do sistema capitalista, da escola como aparelho ideológico do estado, dentre tantos outros conceitos. Seu pensamento influenciou toda uma geração de docentes e continua nos provocando, principalmente nesses tempos de retrocessos e, por que não dizer, principalmente na educação. Afinal, um povo consciente não se deixa enganar por propostas inescrupulosas como as que fizeram chegar ao poder o déspota que hoje governa nosso país.
Paulo Freire nos provocou a repensar a educação disciplinar, propedêutica, eurocêntrica, elitista, opressora. Nos convocou a assumir o dever de lutar pela educação como um direito de todos e todas numa perspectiva transformadora e libertária. Nos tempos da ditadura militar em nosso país, ele já nos chamava a atenção de que “não é possível fazer o discurso democrático, antidiscriminatório e ter uma prática colonial”. (Freire, 1992, p. 68Freire, Paulo. (1992). Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. (2ª ed.). Paz e Terra.).
Com esse entendimento, Freire dizia que o educador devia fazer de sua prática o seu discurso, pois, para ele, educar sempre foi um ato político-pedagógico. Político porque os currículos escolares e as ações docentes são carregadas de intencionalidades a respeito dos sujeitos que queremos formar e para qual sociedade, e pedagógico, pois os educadores consideram os aspectos didáticos e metodológicos para desenvolver os processos de ensino e aprendizagem junto aos educandos, em qualquer etapa do processo educativo.
Entendendo a educação, em acordo com Freire, há que se considerar o modo como cada área do conhecimento contribui com a formação de sujeitos capazes de entender seu lugar no mundo e nele agir criticamente em prol de uma sociedade menos desigual. Reconheço que, nesse sentido, também a Educação Física é convidada a realizar esse exercício e definir sua função social e pertinência de sua presença nas escolas.
É sabido que o corpo é objeto de estudos de todas as áreas do conhecimento, mas, no contexto escolar, reflexões específicas sobre essa dimensão humana, quase sempre ficam a cargo da Biologia e da Educação Física. Nesta última, os saberes e fazeres relativos às práticas lúdicas que constituem o acervo cultural dos grupos sociais específicos e geral. No Brasil, desde 1992, reconhecemos que a Educação Física é a área do conhecimento que lida com a cultura corporal de movimentos e a expressão corporal é entendida como linguagem. (Coletivo de Autores, 1992Coletivo de autores. (1992). Metodologia do Ensino de Educação Física . Cortez.). Dito de outro modo, a Educação Física é a disciplina escolar que se responsabiliza por tratar sobre os conhecimentos, saberes e fazeres presentes nas práticas corporais culturais como nos jogos e brincadeiras, nos esportes, nas danças, nas lutas e, mais recentemente, nas práticas de aventuras, como expressão de linguagens.
Este entendimento de Educação Física foi incorporado nos documentos legais e normativos da educação brasileira e, cada vez mais, tem exigido dos seus(suas) professores(as) a compreensão sobre o que é o corpo e a ludicidade. Revisito, então, neste artigo os escritos de Paulo Freire para ampliarmos nossa compreensão.
A temática da corporeidade não estava no foco do debate trazido por Paulo Freire, mas, certamente, esse é um conceito que permeia toda a sua obra. Assim como Marx, ele pensa o corpo em sua concretude, em seus contextos culturais, no nosso caso, o capitalista. Freire questiona a noção de ser humano fragmentada em corpo e mente, noção essa reforçada pela educação bancária, reprodutivista, que privilegia o intelecto e desconsidera as emoções e a sensibilidade. Para Freire, é inconcebível a separação entre o trabalho intelectual e manual.
Paulo Freire foi um homem do diálogo e da amorosidade. Ao propor uma educação libertadora, ele afirma que essa passa pela tomada de consciência do que é o CORPO. Um corpo que se constitui socialmente por meio das práticas presentes no interior de suas culturas. Corpos mediados pela história, carregados de valores da realidade cultural onde estão inseridos. Corpos que não são da Educação Física e sim, de todos envolvidos com o processo formador de novos sujeitos. Corpos que se tornam CORPOS CONSCIENTES e que se expressam por meio de gestos, palavras, diferentes linguagens.
Para ele, a linguagem é a expressão do conhecimento produzido pelo ser humano na relação sujeito/objeto, e que, como forma de comunicação é carregada de relações de poder. Em diálogo com Faundez, no livro “Por uma pedagogia da Pergunta”, Freire afirma que a linguagem não é só a falada, mas é:
de natureza gestual, corporal, é uma linguagem de movimento de olhos, de movimento do coração. A primeira linguagem é a linguagem do corpo e, na medida em que essa linguagem é uma linguagem de perguntas e na medida em que limitamos essas perguntas e não ouvimos ou valorizamos senão o que é oral ou escrito, estamos eliminando grande parte da linguagem humana. Creio ser fundamental que o professor valorize em toda sua dimensão o que constitui a linguagem, ou as linguagens, que são linguagens de perguntas antes de serem linguagens de respostas. (Freire & Faundez, 1985, p. 49Freire, Paulo, & FAUNDEZ, Antonio. (1985). Por uma pedagogia da pergunta. (3ª ed.). Paz e Terra.)
Esses autores destacam a importância de a escola permitir que os educandos façam perguntas, pois só dessa forma será possível desenvolver os corpos conscientes e autônomos. Caso contrário, os corpos serão educados para a submissão e obediência (Sousa, 2004Sousa, Eustáquia S. de. (2004). A educação dos corpos na escola. In Salgado, Maria Umbelina C., MIRANDA, Glaura V. de. Veredas - Formação superior de professores. (Módulo 6, Vol. 3). SEE-MG.), para a heteronomia. Paulo Freire defendia que os corpos conscientes, por meio das linguagens, expressassem, não uma consciência INGÊNUA, mas sim, uma consciência CRÍTICA, capaz de fazer leituras ampliadas do mundo e de nele intervir.
Conceber os corpos conscientes implica em reconhecer os seres humanos enquanto expressões plurais da vida, reconhecer a diversidade dos corpos de homens, mulheres, gordos, magros, cisgêneros, transgêneros, transversos, queers, crianças, jovens, idosos, indígenas, negros, brancos, portadores de deficiências, dentre tantos outros.
Nessa mesma obra, “Por uma pedagogia da Pergunta”, Paulo Freire nos relata sobre a diversidade dos corpos, afirmando que:
O corpo humano, velho ou moço, gordo ou magro, não importa de que cor, o corpo consciente, que olha as estrelas, é o corpo que escreve, é o corpo que fala, é o corpo que luta, é o corpo que ama, que odeia, é o corpo que sofre, é o corpo que morre, é o corpo que vive! (Freire & Faundez, 1985, p. 28Freire, Paulo, & FAUNDEZ, Antonio. (1985). Por uma pedagogia da pergunta. (3ª ed.). Paz e Terra.)
A experiência desse educador em diversos países, como Chile, Suíça e outros, do território africano, como Guiné-Bissau e África do Sul, o permitiu exercitar a alteridade por meio da diversidade dos corpos. Desse modo, ele viu a diferença e reconheceu a tolerância enquanto uma ação política. Paulo Freire destacou a sabedoria e a virtude da convivência com o diferente como revolucionária, pois é ela (a diferença) que nos coloca diante do diálogo e da possibilidade de nos enriquecermos enquanto sujeitos.
Com esse olhar, o autor nos chama a atenção para o conceito plural de cultura ao afirmar que “as culturas não são melhores nem piores, as expressões culturais não são melhores, nem piores, são diferentes entre elas. (...) A cultura não é, está sendo, e não podemos esquecer o seu caráter de classes”. (Freire & Faundez, 1985, p. 25Freire, Paulo, & FAUNDEZ, Antonio. (1985). Por uma pedagogia da pergunta. (3ª ed.). Paz e Terra.)
Outro conceito central em sua obra, importante para pensarmos os corpos conscientes, é o de liberdade. Freire afirma que o que diferencia o ser humano dos outros animais é o fato de sermos seres integrados ao nosso contexto, situado cultural e historicamente, com capacidade criativa e critica, enquanto os outros animais são seres da acomodação (Sung, 2010Sung, Jung Mo. (2010). Linguagem. In STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides; Zitkoski, Jaime José. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. (2ª ed, pp. 241-243). Autêntica Editora. ).
O ser humano não é algo pronto e luta constantemente contra as forças da dominação e opressão. Mas, para Freire, a liberdade não é a possibilidade de realizar todos os desejos, no sentido de almejá-la sem qualquer limite. Essa seria uma liberdade despótica, negadora de outras vontades. A liberdade daqueles que se consideram os donos do mundo e que, de modo egoísta, só se veem a si mesmos. Assim, a liberdade, para Freire, não “termina onde começa a liberdade do outro, ela se realiza quando se encontra com outras pessoas na luta pela sua liberdade e pela das outras” (Freire apudSung, 2010, p. 242Sung, Jung Mo. (2010). Linguagem. In STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides; Zitkoski, Jaime José. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. (2ª ed, pp. 241-243). Autêntica Editora. ).
A liberdade é, portanto, “uma conquista que se alcança na medida em que se luta pela libertação de si, do outro e do mundo”. (Sung, 2010, p. 243Sung, Jung Mo. (2010). Linguagem. In STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides; Zitkoski, Jaime José. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. (2ª ed, pp. 241-243). Autêntica Editora. ). Liberdade implica em exercitar a nossa autonomia para fazer escolhas e isso exige responsabilidade por aquilo que escolhemos. Responsabilidade conosco, com os outros, com o planeta. Isso é revolucionário.
Viver o Corpo Consciente é viver a liberdade de ser o que se é, no seu tempo histórico, em inteireza consigo mesmo, nas interações com os objetos, com outros seres vivos e humanos. É viver nossos corpos plurais com respeito a diversidade e as diferenças, lutando contra qualquer ato de discriminação, como o racismo, o machismo, o fascismo, a lesbofobia, a homofobia, a gordofobia, o preconceito com as pessoas com deficiência. É viver as manhas do corpo que resiste nas múltiplas linguagens da arte, da literatura, da música, e que se expressa na dança, na festa. Corpo que reconhece o seu lugar nesse mundo de opressão, mas não desiste e luta para transformá-lo.
Paulo Freire destacava a importância de reconhecer os saberes sobre o corpo construídos nas culturas originais, suas manifestações lúdicas, crenças, buscando “entender o sentido de suas festas no corpo da cultura de resistência, sentir sua religiosidade de forma respeitosa, numa perspectiva dialética e não apenas como se fosse expressão pura de sua alienação”. (Freire, 1992, p. 107Freire, Paulo. (1992). Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. (2ª ed.). Paz e Terra.).
Seguindo os passos do Mestre, desenvolvi junto a uma comunidade indígena, de nome Maxakali, que vive no estado onde resido, Minas Gerais, uma pesquisa sobre os seus jogos e brincadeiras (Alves, 1999Alves, Vânia F. Noronha. (1999). O corpo lúdico Maxakali: desvelando os segredos de um programa de índio. [Dissertação de Mestrado em Educação, Faculdade de Educação] Universidade Federal de Minas Gerais). Mais à frente, estudei a festa dos negros, em homenagem à Nossa Senhora do Rosário, também muito presente em nosso estado (Alves, 2008Alves, Vânia F. Noronha. (2008). Os festejos do Reinado de Nossa Senhora do Rosário em Belo Horizonte/MG: práticas simbólicas e educativas. [Tese de Doutorado em Educação, Faculdade de Educação] Universidade de São Paulo), conhecida como reinado, ou congado. Paulo Freire esteve o tempo todo instigando e desenvolvendo minha “curiosidade epistemológica”, no sentido de reconhecer a diferença entre os povos e seus corpos. Dizia ele:
volto a insistir na necessidade imperiosa que tem o educador e a educadora progressista de se familiarizar com a sintaxe, com a semântica dos grupos populares, de entender como fazem eles sua leitura do mundo, de perceber suas manhas indispensáveis à cultura de resistência que se vai constituindo e sem a qual não podem defender-se da violência a que estão submetidos. (Freire, 1992, p. 107Freire, Paulo. (1992). Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. (2ª ed.). Paz e Terra.).
Especificamente em relação ao congado, me propus a “entender o sentido de suas festas no corpo da cultura de resistência, sentir sua religiosidade de forma respeitosa, numa perspectiva dialética e não apenas como se fosse expressão pura de alienação”. (Freire, 1992, p. 107Freire, Paulo. (1992). Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. (2ª ed.). Paz e Terra.)
Penso que Paulo Freire é imprescindível para os educadores que pretendem contribuir para a construção de uma sociedade mais igualitária; de educação libertária e critica, de homens e mulheres que vivem sua corporeidade consciente e que estejam imbuídos das lutas dos trabalhadores, dos oprimidos, por justiça social e por um mundo mais humanizado para todos.
Atualizando o pensamento de Paulo Freire para esses tempos que estamos vivendo, eu diria que a Educação Física, mais do que nunca, precisa reconhecer seu papel na formação dos sujeitos das diferentes etapas da educação para que tenham consciência de seus CORPOS, de seus desejos, sua inserção no mundo, seus sonhos.
Contribuir para que nossos educandos entendam que viver o corpo consciente é gozar da liberdade de ser o que se é, no seu tempo histórico, em inteireza consigo mesmo, nas interações com os objetos, com outros seres vivos e humanos. Diz Freire num diálogo estabelecido com Nogueira (1996)Nogueira, Adriano (Org.). (1996). Reencontrar o corpo: ciência, arte, educação e sociedade. Cabral Geic.:
A corporalidade é um tipo de consciência que se baseia numa inteireza consigo mesma. E isso se expressa, ao desenvolver-se, nas interações com os objetos e com outros Seres Humanos. Não apenas consciência de mim mesmo que me sugere a consciência do entorno, mas penso eu, a consciência de inteirar-se do Mundo e com o Mundo que me permite criar noções do “eu consciente”. (Nogueira, 1996, p. 19Nogueira, Adriano (Org.). (1996). Reencontrar o corpo: ciência, arte, educação e sociedade. Cabral Geic.)
Assim, nossas aulas precisam ouvir os sujeitos, sejam eles crianças, adolescentes, jovens ou adultos. Como esses sujeitos estão vivendo a pandemia? Onde e como passam os seus dias? A realidade é a mesma para todos e todas? As condições de trabalho, de lazer, de estudos são as mesmas? Quais as práticas de lazer estão sendo realizadas? Onde, como? O que seus corpos têm demandado? Que sensações estão sendo vividas? Como estão suportando o medo, a angústia, a alegria de estarem vivos? Que perguntas cada um, no seu interior, tem feito a si mesmo?
Sabemos (e desejamos) que esses tempos pandêmicos vão passar, mas, certamente, as marcas, as dores e as reflexões nos acompanharão por um longo tempo. Provavelmente haveremos de conviver com situações antes desconhecidas e que nos provocaram tantas reações no universo pessoal, como o medo da morte, a angústia, a incerteza e a clareza de que só temos o tempo presente. Por isso, precisamos cada vez mais valorizar nosso tempo com a família, com o trabalho, com o lazer e demais dimensões da vida.
Assim, tantas outras perguntas faremos no pós-pandemia: o que aprendemos com esses tempos? Continuaremos agindo do mesmo modo que fazíamos antes? Como fica nossa relação com o tempo, o trabalho, o lazer, a família e tantas outras? Quais os conhecimentos escolares que realmente fazem sentido em nossas vidas hoje? Como a Educação Física tratará os corpos e a ludicidade no pós-pandemia? Como os conhecimentos construídos nesta disciplina nos ajudarão a cuidar da nossa Casa Comum, a Mãe Terra?
Com base numa escuta atenta à todas essas questões, os professores e professoras de Educação Física, precisam pensar que respostas darão em suas aulas, virtuais e/ou presenciais, a esses desafios. Vejo uma grande oportunidade de problematizarmos nossos currículos eurocêntricos e hegemônicos e a possibilidade de construirmos conhecimentos mais alargados, explorando os saberes das comunidades locais e seus interesses culturais, no que diz respeito à educação dos corpos para que se tornem Corpos Conscientes.
Sabemos que o nosso continente americano é constituído por diferentes povos e os saberes ancestrais das culturas ameríndias, africanas, estas transplantadas para a América. É hora de trazermos essa polifonia de culturas, também corporais, com suas práticas nas danças, nos esportes, nas brincadeiras, nas lutas, nas ginásticas, nas práticas de aventuras, dentre outras, para o interior das escolas. É hora de implementarmos um currículo decolonial, que constrói e respeita os saberes presentes em nossa cultura. Os corpos e suas diversidades pedem passagem para viver as suas tradições e emoções. A Educação Física pode e deve acolhê-las em busca do Corpo Consciente que nos diz Paulo Freire. Eduquemos o nosso olhar, os nossos corpos, as nossas sensibilidades.
Em minha prática pedagógica, atuando na formação de professores e professoras, tanto na Educação Física quanto na Pedagogia e na Pós graduação em Educação da PUC Minas, me coloco ao lado dos oprimidos, dos trabalhadores e da luta por uma sociedade menos desigual. Tendo o Lazer como um fenômeno sociocultural e de direito, privilegio as reflexões que ampliam a leitura de mundo dos alunos sobre a sociedade em que vivemos, para que nela possam intervir com nossos corpos consciente, critica e ludicamente.
Ampliando um pouco mais as reflexões pertinentes à Educação Física, seus objetos de estudos e atuação, os ensinamentos de Paulo Freire também nos permitem pensar sobre o lugar que ocupam o trabalho e o lazer em nossas vidas.
Destaco, aqui, os estudos de Mascarenhas (2003)Mascarenhas, Fernando. (2003). Lazer como prática da liberdade. Uma proposta educativa para a juventude. Ed. UFG. , que publicou a obra “O lazer como prática de liberdade: uma proposta educativa para a juventude”, inspirado na obra de Paulo Freire (1967)Freire, Paulo. (1967). Educação como prática da liberdade. (5ª ed). Paz Terra., “A educação como prática de liberdade”. No estudo de Mascarenhas, o autor considera o lazer como um fenômeno tipicamente moderno, resultante das tensões entre o capital e o trabalho, materializado como um tempo e espaço de vivências lúdicas, de organização da cultura, perpassado por relações de hegemonia (Mascarenhas, 2003Mascarenhas, Fernando. (2003). Lazer como prática da liberdade. Uma proposta educativa para a juventude. Ed. UFG. ).
Com base nesse entendimento, o autor elabora uma proposta de intervenção de ação comunitária, privilegiando a experiência lúdica e educativa, destinada aos trabalhadores e aos grupos sociais menos favorecidos, como possibilidade desses sujeitos refletirem sobre a própria realidade e transformá-la. O método de intervenção prevê uma ação diagnóstica, a definição de temas geradores, a criação de redes temáticas e os ciclos temáticos, como sugeridos por Freire para a educação, para pensar a estrutura das ações comunitárias e o desenvolvimento do lazer em articulação com os interesses do grupo praticante. Assim, pensa o autor, o lazer-educação assume sua posição política e pedagógica de compromisso com os grupos sociais oprimidos, mediante a resistência e luta pela sobrevivência cotidiana.
Numa sociedade moderna e capitalista como a brasileira, o lazer tem sido compreendido como um binômio na relação com o trabalho (Gomes, 2019Gomes, Christianne Luce. (2019). Lazer e produção do conhecimento. UFMG/SESC-DN.). Nessa perspectiva, o “tempo livre” para o descanso, na verdade, não é livre, e sim, uma extensão do trabalho. O lazer se torna uma face privilegiada da indústria cultural, que, por meio de diferentes veículos, oferecem práticas lúdicas que atrofiam a imaginação do trabalhador, promovem a distração e o divertimento fora do trabalho, para que esse sujeito/trabalhador/o indivíduo possa suportá-lo (Vaz, 2006Vaz, Alexandre Fernandes. (2006). Reflexões de passagem sobre o lazer: notas sobre a pedagogia da indústria cultural. Revista Pensar a Prática , 9(1). https://www.revistas.ufg.br/fef/article/view/122 ). Desse modo, o sistema, por meio de seus processos educativos, que, por vezes, envolvem também a escola, reforça, nesses sujeitos, conceitos presentes nos escritos de Paulo Freire, como o da consciência ingênua, da alienação, da domesticação, da desumanização e da perda da condição do sujeito na sociedade.
Entretanto, o campo do lazer vem se ampliando em nosso país. Apoiado em teorias críticas, entre elas, os estudos culturais, os decoloniais e as teorias da complexidade, o Lazer vem contribuindo para que novas reflexões e construções epistemológicas sejam possíveis e despertem cada vez mais a consciência crítica da sociedade brasileira, em especial dos trabalhadores, em busca de seus “corpos conscientes e lúdicos”.
O lazer, ainda que numa perspectiva moderna, vem sendo analisado também em sua dimensão subjetiva e na perspectiva da cultura (Gomes, 2019Gomes, Christianne Luce. (2019). Lazer e produção do conhecimento. UFMG/SESC-DN.). Nessas abordagens teóricas, a criticidade, o diálogo, o respeito ao outro, aos corpos diferentes, diversos e suas culturas, a transformação social, a ampliação da leitura de mundo dos trabalhadores, a autonomia e liberdade para fazer as escolhas das experiências lúdicas, ganham destaque.
De minha parte, tenho pensado no lazer como um fenômeno cultural da contemporaneidade, presente nas sociedades complexas. Em tempos de ambiguidades e incertezas, o lazer tem sido uma das dimensões da vida humana que vem permitindo aos sujeitos viverem o tempo presente e o que este nos oferece. A angústia do tempo que passa e da morte que se aproxima, como nos aponta Durand (2002)Durand, Gilbert. (2002). As estruturas antropológicas do imaginário. (3 ed.). Martins Fontes., nunca se fez tão concreta e real. A pandemia da Covid 19 nos colocou em suspensão com a vida. Muitos de nós adiamos projetos de lazer, como viagens, idas à shows, cinemas, teatros, bares e até mesmo os encontros com amigos e familiares foram interrompidos. A experiência de muitos(as) se resumiu ao interior de suas próprias casas. Por sua vez, a doença não é democrática, uma vez que classes sociais diferentes convivem com realidades diferentes relacionadas a sua rotina de cuidados preventivos, e também ao tratamento e a (possível) cura.
É inegável que, nesse contexto, para aqueles que privilegiadamente podem usufruir de diferentes lazeres, estes têm se tornado uma possibilidade de manter a saúde mental e a vida, e, ao mesmo tempo, um instrumento de alienação, pois, se não conseguimos analisar criticamente nossas ações, nos deixamos ser seduzidos pelos apelos da indústria cultural, principalmente das tecnologias e redes sociais.
Por todo o planeta, onde a Covid 19 já está mais controlada, as práticas de lazer estão retornando. Também no Brasil isso vem ocorrendo, ainda que a população não esteja 100% vacinada e o vírus não esteja eliminado. Nos estádios de futebol já assistimos à presença de 60 mil torcedores. Essa é uma discussão da qual professores(as) de Educação Física não podem se furtar junto aos seus educandos. Novamente a discussão sobre a liberdade se faz presente. O que vale mais: a vida ou a economia? Qual a função social de práticas esportivas, como é o caso do futebol no Brasil, para os sujeitos e para a sociedade? Não estou querendo dizer que essas práticas não devam existir, mas problematizá-las é o nosso papel.
Esta situação não passaria despercebida para Paulo Freire. Ele nos inspira a pensar que somos sujeitos da nossa história e compreendê-la já é um primeiro passo para nossa ação de resistência libertadora. O segundo passo, certamente, diz respeito aos processos educativos que não se dão apenas na escola, mas em todo tempo e espaço nos quais se desenvolvem práticas sociais por meio de relações humanas e seus corpos, entre elas, aquelas construídas no lazer. Não tenho duvidas que falta em nossa formação escolar algo que poderia ser desenvolvido em todas as áreas do conhecimento: uma educação para o lazer!
Assim, defendo a necessidade urgente de nos (re)educarmos para vivermos experiências corporais (trans)formadoras de educação e de lazer. Reconheço o potencial desse último para a nossa formação e da nossa coletividade, do nosso Corpo Consciente e Lúdico, por meio das práticas simbólicas e educativas, presentes em nossas culturas. Considero que:
o lazer se torna uma possibilidade para o sujeito vivenciar uma educação que objetive a apropriação de ferramentas potencializadoras para a realização de leituras críticas em relação às estratégias reprodutivistas e alienantes presentes em nossa sociedade. Uma educação das sensibilidades, com vista à sua formação integrada, que alcance a saúde, a qualidade de vida (individual) e da vida (coletiva), a felicidade, em harmonia para viver consigo mesmo, com o outro, a sociedade e o meio ambiente, de modo pleno e lúdico. (Noronha et al., 2010, p. 36Noronha, Vânia et al. (2010). Sistema de Monitoramento Avaliação dos Programas Esporte e Lazer da Cidade e Segundo Tempo do Ministério do Esporte. O Lutador. )
Por isso, defendo uma educação das sensibilidades que contemple outros conhecimentos e saberes, pouco afeitos nas escolas propedêuticas de nosso país. Uma educação embevecida de alma, de sentido, do olhar, da escuta de si e do outro, em diálogo com as diferenças e respeito à alteridade. Uma educação em que a poesia, a música, a literatura, a arte, a festa, a brincadeira, o lazer, seja provedor de anima, de sonhos, de ludicidades e de imaginários. Estaremos contribuindo, assim, para que as futuras gerações possam enfrentar os antigos problemas que não demos conta de resolver, construindo soluções outras. Aqui, mais uma vez a esperança de que tanto nos fala Freire se torna imprescindível.
Estamos vivendo tempos difíceis. Como professores de Educação Física, não vamos fugir da luta por um mundo melhor. Para isso, trabalharemos no sentido de construir com nossos alunos e alunas a compreensão do que é viver nossos CORPOS CONSCIENTES e LÚDICOS.
Concluo afirmando que a leitura de algumas obras de Paulo Freire e as experiências vividas ao longo de minha ação docente permitiram que eu construísse uma concepção de sociedade, de educação, de homens e mulheres que traduzem uma visão de mundo, ao lado dos trabalhadores, dos oprimidos. Sempre estive ao lado daqueles e daquelas que lutam por justiça social e por um planeta mais humanizado para todos e todas.
Desejo que Paulo Freire permaneça vivo em nossos corações, em nossas práticas sociais e educativas. Ele que tanto denunciou a realidade mundial também nos trouxe muitos anúncios e nos chamou a atenção para os sonhos. Freire nos convida a entender que o sonho também é politico e que “o(a) intelectual” tem um papel preponderante em relação ao seu sonho. Diz ele que devemos sonhar o que é possível de ser realizado e que o sonho persiga as condições concretas,
afinal, não se realiza o sonho a partir dele, em si, mas do concreto em que se está. Para isso, é preciso compreender o presente não apenas como presente de limitações, mas também de possibilidade. É preciso, pois, compreender o sonho como possível e como precisando de ser viabilizado e não como algo pré-dado. (Freire & Faundez, 1985, p. 67Freire, Paulo, & FAUNDEZ, Antonio. (1985). Por uma pedagogia da pergunta. (3ª ed.). Paz e Terra.)
Estamos vivendo tempos de retrocessos no Brasil, de perda de direitos, de perda da dignidade, da volta da fome e da miséria. Paulo Freire nunca esteve tão atual, apesar de os esforços de uma parcela retrógrada quererem apagá-lo de nossas memórias. Mas as sementes da justiça social foram há muito lançadas por nosso “Patrono da Educação” e, ao vivermos nossos CORPOS CONSCIENTES e LÚDICOS, renovamos as esperanças no sonho por um mundo melhor e a certeza que tudo isso vai passar. Esperancemos! Vivamos o amor por nós, pelo outro, pela natureza! Lembremos que, para Freire, a amorosidade “se materializa no afeto como compromisso com o outro, que se faz engravidado da solidariedade e da humildade”. (Fernandes, 2010, p. 27Fernandes, Cleoni. (2010). Amorosidade. In STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José. (Orgs.). (2ª ed.). Dicionário Paulo Freire. (pp. 37-39). Autêntica Editora. ).